#13: Bitoque
Nutrir o vínculo mais do que a posse
Durante muitos anos, sonhei em ter um cachorro. Ele seria dócil e simpático, com o pelo bonito e bom de passar a mão. A gente iria para inúmeros lugares juntos e esse cachorro, o meu cachorro, encantaria todos ao seu redor. Estava deitada na cama, me sentindo muito sozinha, quando vi a foto de um filhote barrigudo passando pelo feed. Nhoque, era como ele se chamava. Adotei. E logo rebatizei o bicho com o nome do cachorro dos meus sonhos, Bitoque, já imaginando o moletonzinho cinza com capuz que colocaria nele nos dias mais frios—um desconhecimento total do que me aguardava.
Bitoque é medroso e emburrado. Não gosta de barulho, nem de gente que não sabe respeitar o espaço dele. É portador de sensibilidades gastrointestinais que, somadas a alguns erros de adaptação, resultaram num cãozinho bem pouco sociável. Já me mordeu mais de uma vez e abocanhou o marido de uma amiga que esticou a mão falando “calma, tá tudo bem", enquanto ele rosnava. Rouba chinelos, guardanapos e qualquer coisa que caia no chão. O pelo é bonito sim e bom de passar a mão, mas caramba, como cai. E se espalha pela casa inteira. In-tei-ra. Moletonzinho cinza com capuz? Kkkk risos nervosos.
Nos nossos primeiros anos juntos, achei que a minha missão era mudá-lo: ajustar o temperamento, investir no reforço positivo, criar formas de comunicação que fossem capazes de fazer dele um cachorro melhor—pra quem? Foram três adestradores e mais ou menos uns quatro anos até que eu percebesse que o cachorro que eu tinha era bem diferente do cachorro que eu idealizei, mas que isso não fazia dele um companheiro pior, porque convivência é diferente de obediência e, no fim do dia, os limites do Bitoque são justamente o que fazem dele o que ele é: um cachorro de verdade, que existe para além da minha imaginação.
No livro O Manifesto das Espécies Companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa, Donna Haraway defende que a relação humano-cachorro pode ser fonte de inspiração para uma ética e políticas comprometidas com a preservação da alteridade. Isso porque, quando convivemos com um animal, aprendemos algo sobre como criar pontes entre duas realidades e experiências de mundo completamente distintas. “Cachorros não existem para os humanos", Donna afirma. “Essa é, na verdade, a beleza dos cães. Eles não são uma projeção nem a realização de um desejo, muito menos o télos de nada. Eles são cachorros: uma espécie em relação obrigatória, constitutiva, histórica e proteica com seres humanos. Essa relação não é especialmente agradável; é cheia de desperdícios, crueldade, indiferença, ignorância e perdas, bem como alegrias, invenções, trabalho, inteligência e diversão”.
Troque “cachorros” por pais, mães, amigos, parceiros românticos. Troque “humanos” pelo outro pólo desta relação e veja a magia acontecer: a possibilidade do florescimento de um companheirismo para além da utilidade, ou do que gostaríamos que o outro fosse, uma conexão encarnada e não idealizada, com todas as dores e delícias que isso envolve.
Ser capaz de amar e conviver com um corpo completamente diferente do seu, com códigos, linguagem e subjetividade próprias. Construir rotinas com esse ser estranho, pequenos rituais que se repetem todos os dias. Nutrir o vínculo, mais do que a posse. Ver ele se assustar ou entreter com coisas que são indiferentes para você. Aprender a amar essas coisas e se distanciar do que dá medo, por puro respeito. Encontrar uma forma de indicar os limites; ser firme, mas gentil; não levar tão a sério quando o outro mostra os dentes. Saber que, a qualquer momento, você pode ser trocado por um pedaço de frango, mas que o desejo do outro pertence à natureza do outro e isso diz muito pouco sobre você. Nutrir o vínculo, mais do que a posse—já falei isso?
Bitoque completa cinco anos em março. E não parece absurdo dizer que ele me ensinou muito sobre o amor. Mas não um amor encapsulado, dócil, que encanta todos ao seu redor. Não. O amor que eu tenho é muito diferente do amor que eu idealizei: solta pelo pela casa inteira e se recusa a usar moletonzinho cinza com capuz. Indomável. Já me tirou sangue e risadas. E segue aqui. Dormindo no sofá, alheio aos esforços que eu faço para juntar palavras e dar sentido a tudo isso. Ainda assim, comigo. Sempre comigo.
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Também tenho um Bitoquinho de cinco anos aqui em casa. Lindo, lindo tudo o que escreveste. A identificação foi fácil para além da coincidência.
Amei amei amei